Novembro é conhecido como Novembro Negro, pois é um mês em que se “comemora” o Dia da Consciência Negra. Momento esse que voltamos nossos olhares e ouvidos para as questões raciais. Porém, não podemos nos restringir a esse período. Todos os dias as barreiras estruturais e as desigualdades raciais marcam as nossas vidas, então por que só falar agora?
A luta por justiça racial é permanente, e em todos os outros meses devemos reforçar esse debate, pois ainda temos um longo caminho a percorrer. E um dos campos mais urgentes dessa luta é o da mobilidade urbana, que representa um reflexo nítido das desigualdades raciais e territoriais que estruturam as nossas cidades.
E não estamos tratando apenas de deslocamentos, mas do direito de estar, de existir e de acessar os espaços da cidade de maneira ampla. Mobilidade é, acima de tudo, um direito humano, mas será que esse direito é igual para todos? Quem realmente tem o direito de estar nas ruas, de se deslocar pela cidade e de usufruir de seus espaços? Quem pode caminhar com menos preocupação, sem ser alvo de preconceito ou violência?
Sabemos que as cidades foram pensadas e estruturadas para uma classe média branca, com acesso garantido a transporte, lazer e cultura. Desde a construção de bairros e espaços públicos até a distribuição de serviços e infraestrutura. Como bem destacou Milton Santos, um dos geógrafos mais influentes do Brasil, a cidade não é um espaço neutro ou natural, mas sim um produto de processos históricos e econômicos que favorecem certos grupos enquanto marginalizam outros. Ele argumenta que a organização do espaço urbano reflete as relações de poder e exclusão, onde o privilégio de alguns se dá à custa da segregação e da marginalização de outros. A cidade, portanto, não é apenas um reflexo da sociedade, mas também uma ferramenta de perpetuação de desigualdades.
Se olharmos para a história das grandes cidades brasileiras, veremos que, ao longo do tempo, a urbanização foi projetada para atender principalmente aos interesses de uma elite branca e detentora do poder político e econômico. A escolha dos locais para a construção de áreas de lazer e cultura sempre privilegiou regiões centrais e de fácil acesso. Enquanto isso, as periferias, onde a maior parte da população negra reside, foram relegadas a um segundo plano. As cidades cresceram de maneira desigual, com menos investimentos em infraestrutura, transporte de qualidade e espaços públicos de convivência. Na visão de Joice Berth, arquiteta e urbanista, as estruturas urbanas não são neutras, mas refletem e reforçam desigualdades sistêmicas, especialmente no que diz respeito à segregação racial e social. Ela argumenta que as cidades brasileiras não apenas marginalizam a população negra, mas também limitam o acesso das mulheres negras e periféricas a serviços, oportunidades e qualidade de vida. As periferias, portanto, se tornam não apenas espaços físicos de exclusão, mas também símbolos de um ciclo contínuo de privação e opressão.
No caso da mobilidade urbana, essa exclusão se traduz em linhas de transporte que não cobrem adequadamente as regiões periféricas, em custos elevados de passagem que comprometem o orçamento das famílias negras e periféricas, e em uma infraestrutura urbana que muitas vezes ignora as realidades e demandas dessa população. Para muitas pessoas negras, a simples ação de se deslocar pela cidade — seja para trabalhar, estudar ou até mesmo para buscar lazer — é repleta de obstáculos que vão desde a precariedade do transporte público até a violência policial, que criminaliza o corpo negro nas ruas. Para Juliana Borges, escritora e pesquisadora de segurança pública, a criminalização da população negra é parte de uma política de exclusão mais ampla. Borges diz que o sistema prisional e a polícia são ferramentas de controle racial, e essa lógica de controle se estende também ao espaço urbano, onde o deslocamento de corpos negros é constantemente vigiado, marginalizado e punido.
Quando falamos de alternativas de mobilidade, como a bicicleta, a desigualdade é mais visível. As periferias sofrem ainda mais com a falta de ciclovias adequadas e seguras. A falta de infraestrutura para o uso seguro da bicicleta tem a ver com um planejamento urbano que não leva em conta as necessidades dessa população.
Nas áreas de classe média, a infraestrutura possui vias mais amplas e sinalizadas, ciclovias bem estruturadas, calçadas largas e iluminação pública de qualidade. Já nas periferias a realidade é bem diferente: ruas mal iluminadas, calçadas estreitas ou inexistentes e transporte público escasso. A desigualdade não é apenas uma questão de deslocamento, mas também de acesso aos próprios espaços da cidade. A segregação geográfica e a exclusão se refletem diretamente nas políticas de mobilidade, que não garantem condições iguais de acesso a todos.
Uma pesquisa realizada pela Escola Politécnica (Poli) e pelo Centro de Estudos da Metrópole, ambos da USP, investigou a acessibilidade e qualidade do transporte público em quatro grandes capitais brasileiras: Curitiba, Fortaleza, Rio de Janeiro e São Paulo. O estudo de doutorado, intitulado “Desigualdades de classe, raça e gênero no acesso ao transporte e ao espaço urbano em cidades brasileiras: análises empíricas e métodos para políticas e planejamento”, analisou como as desigualdades socioespaciais e a segregação influenciam o acesso ao transporte e, consequentemente, a oportunidades para diferentes grupos sociais. O estudo também revelou que as populações mais marginalizadas, especialmente negras e de classes mais baixas, enfrentam maiores barreiras no acesso a transporte público de qualidade, refletindo uma forte associação entre a estrutura social e a oferta desigual de serviços de mobilidade nas cidades.
O contexto de desigualdade na mobilidade é ainda mais grave considerando que, no transporte público, muitas pessoas podem gastar até 4 horas diárias em deslocamento, o que impacta diretamente a rotina e o bem-estar. Além disso, a falta de segurança é um outro fator relevante nessa discussão.
A população negra enfrenta, diariamente, o medo de ser abordada, revistada e até agredida pela polícia, apenas por estar nas ruas. O corpo negro, em movimento, ainda é tratado como ameaça, o que faz com que muitas pessoas se sintam inseguras para exercer seu direito de ir e vir. Isso afeta diretamente a mobilidade, pois a sensação de vulnerabilidade leva muitos a evitarem certos trajetos ou horários, restringindo seus deslocamentos a atividades essenciais, como trabalho e estudo, e limitando sua liberdade de transitar pela cidade sem receios.
Projetos como o Bike Arte Brasil, feito pelo Instituto Aromeiazero desde 2012 nos mostram que a transformação dos espaços públicos vai além da criação de infraestrutura física, ela envolve a reinvenção do espaço urbano como um território de inclusão, expressão e pertencimento. Através da combinação da arte e da bicicleta, o projeto não só promove a mobilidade sustentável, mas também fomenta a construção de um senso de comunidade e fortalecimento dos laços sociais.
Nossa expectativa é que, ao unir a mobilidade com a cultura e a arte, possamos dar visibilidade a histórias e identidades que muitas vezes são marginalizadas, proporcionando às comunidades uma nova forma de se apropriar do espaço urbano. A bicicleta, nesse contexto, torna-se uma poderosa ferramenta de emancipação, ao mesmo tempo em que a arte promove a reflexão sobre os desafios da desigualdade e da exclusão, mas também sobre as possibilidades de transformação e resistência.